"Nascer, morrer, renascer ainda e progredir continuamente, esta é a Lei."

Não existe maior amor do que este



Ninguém tem maior amor do que este: de dar alguém a própria vida em favor dos seus amigos.
Jo 15:13

Um jovem chinês, Té-Ha-Tá, caminhava por uma estrada ao cair da tarde. Olhava ao longe as montanhas nevadas do Tibete, onde os velhos monges elevavam suas orações ao Senhor da Compaixão.

A uma volta do caminho, sobre uma eminência de pedra, surge repentinamente, para espanto e terror do jovem, um vulto que ele não tardou a reconhecer: era o pavoroso Han-Ru, o Anjo da Morte.

Té-Ha-Tá pressentiu no seu coração a desgraça para sua vida. O terrível anjo da destruição estava próximo a casa de sua noiva, a meiga Li-Tsen-Li...

O jovem perguntou atemorizado:

_Que fazes, Han-Ru, aqui perto da casa de minha noiva?

Pacientemente, o emissário do destino respondeu:

_É justa a tua inquietação, ó jovem. Vim a este recanto da Terra, buscar justamente Li-Tsen-Li. Na sabedoria das Leis divinas, está determinado que tua noiva cumpriu o tempo de sua vida neste mundo. É chegado o dia final de seu destino.

_Piedade, piedade, Han-Ru! É tão linda tão meiga minha noiva. Amo-a loucamente e tudo faria para salvá-la. Por Amor de Maia-Dêvi, deixa viver Li-Tsen-Li!

O Anjo da Morte silenciou, em profunda meditação e depois respondeu solenemente:

_A ti, devoto de Maia-Dêvi, é permitido obter uma graça do Céu. Podes prolongar a vida de tua noiva  sob uma condição. Tens direito a uma vida longa e tranqüila, Te-Há-Tá. Restam-te ainda, agora vais saber, quarenta e seis anos de vida. Podes, entretanto, e esta é a condição ceder à tua noiva metade do teu tempo que te resta na carne. Li-Tsen-Li poderá viver em tua companhia, vinte e três anos, a metade do restante de tua vida. Terminado este prazo, ambos morrerão juntos, no mesmo instante. Aceitas a proposta?

Te-Há-Tá hesitou. Hesitou. Ceder a metade de sua vida? Sacrificar vinte e três anos em favor de sua amada? Que fazer? Que responder ao Anjo da Morte?

_Tua proposta, Han-Ru, é imensamente grave para mim. Podes esperar minha resposta até que eu ouça a opinião de meus três melhores amigos, que sempre me orientam na vida?

_Sim, ó jovem. Aguardarei, aqui mesmo tua resposta até antes do amanhecer. 

Nessa mesma hora (já anoitecera...) Te-Há-Tá partiu lépido, em busca dos três conselheiros de sua vida. O primeiro era um artista tibetano. Um escultor famoso. Seu conselho foi franco e sincero: a vida só é digna de ser vivida quando alimentada por uma grande e puro amor. E não existe amor verdadeiro sem renúncias e sacrifícios.

_Serás feliz Te-Há-Tá_ disse o artista_ se puderes demonstrar a grandeza de teu coração, medindo-a pela extensão de um ingente sacrifício. Pela mulher amada o homem deve sacrificar, meu amigo, não metade de sua vida, mas a existência inteira.  Esse foi o conselho do primeiro amigo.

Te-Há-Tá buscou o segundo conselheiro, um jovem mercados de peles, Nian-Si. Cientificado dos acontecimentos, respondeu o segundo amigo:

_É uma proposta louca, Te-Há-Tá! Onde já se viu um moço rico e cheio de saúde, como és, sacrificar a metade da vida por causa de uma mulher? Sem desprezar os valores e perfeições de tua noiva, digo-te que encontrarás por toda a parte, aqui no Tibete, atrás destas montanhas, milhões e milhões de mulheres lindas, tão lindas e tão belas como tua noiva... E quem pode prever o futuro, meu amigo? E se amanhã, dominada por uma paixão, Li-Tsen-Li te abandonar, esquecida do teu sacrifício e for viver, junto de outro coração, a vida que é uma parte de tua própria vida? Loucura, loucura, meu pobre Te-Há-Tá...

Em face das opiniões antagônicas dos seus dois amigos, cresceram a dúvida e a indecisão ainda mais no coração de Te-Há-Tá. E nesse estado mental, dirigiu-se à casa do seu velho e sábio conselheiro, o estudioso Kin-San. O terceiro mentor assim opinou ao desorientado rapaz:

_Meu caro Te-Há-Tá, se amas realmente tua jovem noiva, deves ceder-lhe metade do teu tempo que te esta viver. Convém impor, entretanto, uma condição ao Anjo da Morte. A parcela de vida que cederes à tua noiva, poderá ser retomada por ti, a qualquer momento, em caso de infidelidade de tua futura esposa. Se ela se mostrar indigna do teu sacrifício, perderá o direito ao tempo de vida que lhe foi cedido. Fora disso, Te-Há-Tá, seria loucura. Fizeste bem em hesitar, sendo prudente. Só os insensatos é que nunca hesitam.

***

O jovem noivo aceitou a terceira solução, que imediatamente antes do amanhecer, levou ao Anjo da Morte. O mensageiro divino aceitou a proposta de Te-Há-Ta e lhe respondeu:

_Está bem, Te-Há-Ta! Tua bondosa noiva Li-Tsen-Li viverá mais vinte e três anos. Esta parcela de vida não foi, porém dada e sim emprestada. E o Anjo da Morte desapareceu.

O jovem Te-Há-Ta casou-se com Li-Tsen-Li e dentro de algum tempo eram considerados os esposos mais felizes de toda a região do Tibete. Li-Tsen-Li, após o matrimônio, passou a chamar-se Til-Long-Li, que quer dizer Minha Vida Querida. Um dia, Te-Ha-Tá teve que fazer uma longa viagem e deixou sua amada esposa e um filhinho de poucas semanas em casa de seus pais. Quando regressou, alguns meses depois, teve a dolorosa surpresa de encontrar seus três amigos, de fisionomia triste e abatida, a sua espera, à entrada da povoação em que vivia. Seu coração sobressaltou, não vendo a esposa à sua espera.

_Onde está Minha Vida Querida?Por que não veio se lhe mandei aviso de meu regresso?

_Enche de coragem teu coração, ó Te-Há-Tá: uma grande desgraça, há três dias, caiu sobre tua vida...

_Desgraça? Que foi? Digam-me, digam-me a verdade. Onde está minha esposa?

_ Morreu, meu amigo_ respondeu o mais velho.

_Morreu? Não é possível. Não é possível... Eu sacrifiquei Por ela metade de minha vida...

E o jovem, em pranto convulsivo, começou a blasfemar contra o Senhor da Compaixão. Erguia os braços para o Céu, punhos cerrados, em furor, revoltado, blasfemando o Santo nome de Deus... Os amigos se afastaram, deixando-o dar expansão à sua angústia e sem poderem demove-lo de sua revolta.

Eis senão quando, no auge de nova explosão de sofrimento, surge diante do moço enlouquecido de dor, a figura de Han-Ru, o Anjo da Morte.

_ Han-Ru, faltaste à tua palavra... Onde está minha esposa? Que fizeste de Li-LongLi?

_ Acalma-te e escuta, Te-Ha-Tá. Devo dizer-te a verdade, a fim de que não continues a blasfemar contra o Senhor da Compaixão. Tua esposa, bem sabes, deveria viver mais vinte e três anos. Há poucos dias, porém, o teu filhinho adoeceu gravemente e iria morrer. Que fez tua esposa? Pediu a Deus em comovedora oração, que a vida dela fosse dada ao pequenino enfermo. Que a criança pudesse viver, embora com o sacrifício de sua vida. E assim aconteceu, Te-Ha-Tá. Salvou-se o teu filho, mas a tua esposa, morreu...

E diante do assombro do jovem aflito, o Anjo da Morte, concluiu:

_ Enquanto tu, como noivo, hesitaste em ceder-lhe a metade de tua vida, ela, mãe extremosa, não hesitou um segundo sequer, em dar, pelo filhinho, a vida inteira...

***

Esta jovem mãe tibetana é um símbolo, uma imagem de nossas mães amadas, a quem hoje rendemos homenagem. Elas são realmente, como conceituava Almeida Garret, “a mais bela obra de Deus”. Seu amor nos acompanha todos os dias da vida e além da morte. Sua imagem torna-se escudo de nossas almas, alimento de nosso coração, síntese das afeições humanas. Seus sacrifícios ocultos são muitas vezes o preço de nossa formação moral. Suas lágrimas afiançam diante de Deus, sem o sabermos, a proteção do Céu sobre as nossas vidas.

Clóvis Tavares
(Texto publicado no livro "Sal da Terra")