"Nascer, morrer, renascer ainda e progredir continuamente, esta é a Lei."

Como entendemos a mensagem de Jesus

Por Eliana Haddad


Espírita desde criança, Eduardo Guimarães é de Niterói, RJ, onde foi evangelizador de jovens e crianças e, por várias gestões, presidiu a Casa Espírita de Caridade Aureliano. Farmacêutico e bioquímico com especialização em oncologia, Eduardo é expositor espírita de renome internacional e estudioso do espiritismo desde menino, principalmente do Evangelho, sobre o que nos concedeu esta interessante entrevista.

Com a proximidade do Natal, como podemos analisar a atuação e o papel de Jesus na sociedade hoje?

O Natal comemora o nascimento de Jesus, muito embora a data certa do seu nascimento ninguém verdadeiramente o saiba, assim como também o local em que se deu. Mas ainda que o 25 de dezembro seja uma convenção humana ocidental, não podemos deixar de considerar que nas proximidades desta data, pela contaminação talvez de um espírito crístico, percebemos uma atmosfera espiritual diferente no planeta. Há, sem dúvida, um forte apelo comercial, mas não podemos negar também que as trocas de gentilezas e amabilidades se acentuam nesta ocasião do ano, longe ainda do "amai-vos uns aos outros".

Em momentos de intolerância, extremismos, guerras religiosas, como você analisa a questão do cristianismo? Foi benéfico até que ponto?

A história das religiões divide as opiniões. Há muita gente que enxerga nas religiões maiores malefícios do que benefícios para a humanidade, e alguns fatos históricos reforçam esta interpretação. Porém não só a religião, mas todos os aspectos da cultura humana podem ser distorcidos por mentes neuróticas. Os radicalismos e extremismos são sempre nocivos em qualquer área da atividade humana.
Ninguém desconhece os grandes erros cometidos pelos homens em nome de Jesus, sobretudo, no período da Idade Média. Porém, há que se reconhecer que o cristianismo inaugurou no mundo uma nova ordem, voltada para os desvalidos e esquecidos de todos os tempos. Foi com a mensagem de Jesus que a caridade assumiu a sua feição mais pura, que surgiram na Terra as instituições de benemerência: os asilos, os leprosários, hospitais e orfanatos. Além disso, é na sociedade cristã que os grandes temas das discriminações de sexo, cor e nível social são discutidos com maior justiça.

Você acha que a dificuldade para o Evangelho de Jesus ser definitivamente implantado na Terra seria também uma consequência dessas falsas interpretações?

Nós interpretamos erradamente a mensagem de Jesus porque ainda nos falta o necessário desenvolvimento espiritual, que só o processo das vidas sucessivas realizará em nós. Jesus traz um ideal de homem que ainda não assimilamos no mundo em que vivemos.

Mas não chega a ser desoladora essa distância existente entre nós e Jesus?

Eu não diria desoladora, até porque reflete a nossa realidade, e sendo realidade, não podemos negar, e desanimar poderia nos levar à desistência pela busca. O "cair em si" da parábola do filho pródigo, seja talvez esta constatação, mas também o "levantar-me-ei" da mesma parábola, deve ser a nossa disposição de prosseguir. Em arremate, diria que é preferível reconhecermos esta distância, a tentar descer Jesus ao nível da nossa pequenez. A embarcação é que deve ir em direção ao cais.

A ideia de Jesus como salvador não coloca os homens numa posição comodista, aguardando sua volta para o Juízo Final?

Essa ideia de salvação no cristianismo também não foi bem compreendida. Que salvação apregoada é essa que alguns exegetas, estudiosos e religiosos enxergaram? O espiritismo vê a salvação como um caminho, uma proposta de orientações que Jesus nos deu através de exemplos para que a gente se inspire e se ajuste a uma maneira de agir e não como uma questão da salvação exterior. A gente entende que Jesus veio trazer a salvação enquanto boa nova, ou seja, um aperfeiçoamento da lei antiga. Uma nova proposta de ser, mas partindo-se do nosso trabalho e esforço.

Com tantas interpretações particulares, como analisar a universalidade da mensagem de Jesus?

Mesmo as nações que por bloqueios culturais, regionais, políticos, não conheceram Jesus, não significa que estejam fora da proposta cristã. Se você considerar que Jesus sintetizou a Lei no "amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo", doando-se para o próximo, trabalhar em seu benefício, que todas as leis se reduzem a esse amor, em qualquer ambiente religioso, desde que você reconheça a sua filiação divina e se entregue desinteressadamente ao próximo, você faz parte do plano de Jesus ainda que não seja cristão.

Daí a conclusão de Kardec de que "fora da caridade não há salvação"?

Sim. E isso está muito bem assentado na mensagem de Jesus. Quando você abre o Evangelho de Mateus, em que Jesus fala do Juízo Final (25: 31-46), de como seria a divisão entre os maus e os bons, entre os que, enfim, estariam à direita ou à esquerda, ele elucida quem estará à direita dizendo: "Estava com fome e deu-me de comer, estava com frio e deu-me o agasalho, estava no hospital, foram visitar-me; estava na prisão, foram me vê." Jesus, no discurso registrado por Mateus, esclarece o critério de julgamento. De maneira clara e iniludível estabelece o princípio da caridade.

Como analisar o espiritismo como a Terceira Revelação com relação à história religiosa da humanidade?

Quando Kardec pergunta sabiamente às entidades na questão 625 de O livro dos espíritos "qual o maior modelo e guia que a humanidade?", recebeu sinteticamente a resposta: "Jesus". Veja que Kardec pergunta "modelo e guia", alguém que seja exemplo e que estabeleça uma diretriz a seguir. Ora, se a diretriz é a caridade, Kardec também pergunta qual é o sentido da caridade como entendia Jesus, e obtém como resposta: "benevolência para com todos, indulgência para com as falhas alheias e perdão das ofensas". Esse é um princípio comum a todas as religiões. O espiritismo, no que sustenta essa posição de Jesus, abre mais uma possibilidade ao nosso entendimento, à nossa percepção, ao desvendar para nós o mundo espiritual, convidando-nos a uma visão mais ampliada da vida. Ainda em referência à questão sobre os radicalismos e extremismos, enxergamos na doutrina espírita uma possibilidade mais amadurecida de encarar a religião, através da racionalidade podemos exercitar a nossa crítica a essas tendências excessivamente polarizadas.

Você acredita que hoje já se compreende o motivo da vinda de Jesus à Terra?

As interprestações são variadas. O respeito aos sacramentos da igreja parece ser a tônica do catolicismo, ao passo que a vertente protestante, defende a fé como elemento necessário á salvação além de um complicado conceito de eleição divina. Acredito que a doutrina espírita, referindo-se a Jesus como guia e modelo da humanidade e a proposta de lhe seguir os ensinamentos, constitui-se uma leitura bastante interessante.

O aspecto religioso do espiritismo estaria justamente nesse ponto da transformação moral?

Sem dúvida. Allan Kardec subdivide O evangelho em cinco partes: os atos comuns da vida de Jesus; os milagres; as predições; as palavras tomadas pelas igrejas para compor os dogmas; e o ensino moral. Então, é exatamente no apelo da nossa transformação moral a partir da mensagem da 'boa nova' é que o espírita enxerga Jesus na codificação.

Como analisar a mensagem das bem-aventuranças no mundo de hoje diante da fome, das injustiças, da falta de paz, das aflições?

As bem-aventuranças abrem o Sermão do Monte e eu as enxergo como um processo. Primeiro, elas não são realizáveis aqui, totalmente, nessa condição espiritual em que nos encontramos. Pode ser até aqui na Terra, mas num outro momento. Conforme vamos entendendo e praticando as bem-aventuranças, vamos também transformando o planeta. As bem-aventuranças não se constituem em algo em que você dorme e acorda "bem-aventurado", como simples metamorfose repentina. Vamos experimentando, na vida, momentos de bem-aventuranças. Não é por que você chora que é um bem-aventurado. Mas, em alguns momentos, pela maneira como você chora, torna-se bem-aventurado. Espontaneamente não somos mansos. Mas, quando você consegue vencer sua agressividade e dá espaço a uma revisão da sua postura em relação à agressão, sente-se um bem-aventurado. Aos poucos isso se sedimenta e depois não se consegue mais abrir mão desse estado de bem-aventurança. Mas dirão alguns: "Se as bem-aventuranças não são realizáveis agora, por que Jesus as apregoou, se sabia que nós não teríamos condições de executá-las?" Jesus traz um ideal que vai se completando ao longo do tempo.

E quando vemos a questão da idolatria em tantos religiosos com relação à figura de Jesus? Isso não é um retrocesso?

Eu diria que essencialmente estamos todos certos. Quando o protestante diz que somos salvos pela fé, basta crer e você é salvo, ele reconhece que o homem em Cristo nova criatura é, transforma-se e mostra Jesus através da nova conduta. O evangélico diz que você está salvo porque Deus lhe escolheu, mas você só mostra essa eleição a partir de uma conduta. Não seria assim tão complicado, em minha opinião, poder fazer uma analogia com o que Kardec diz, de que só se reconhece o verdadeiro cristão pela sua transformação moral e pelo esforço que faz para domar suas más inclinações. Será que essa transformação não seria a aceitação de um princípio espiritual libertador, como o evangélico também o tem? O fundamental é manifestar a vontade de Deus na atitude. Penso que essencialmente em termos de cristianismo estamos muito bem sintonizados.

Como você vê no espiritismo hoje o papel de Jesus?

Tenho visto que a partir do trabalho de Emmanuel, através do Chico [Xavier], uma nova percepção à necessidade da revivescência de Jesus. Falo até por uma questão de história pessoal. Durante muito tempo, quando comecei a estudar espiritismo, eu abria sobre a minha cama os livros de [Ernesto] Bozzano, e ficava encantado com aquela obra. Depois foi um processo de filosofia, de entender a vida, as leis de causa efeito etc... Mas chega um momento em que você chega à finalidade última que é o evangelho. Percebo também que isso acontece com o movimento espírita. Tivemos o momento de cientificismo, de provar se a reencarnação existia ou não, de se correr atrás dos fatos para comprovar a imortalidade da alma. Hoje ninguém mais discute parapsicologia, metapsíquica, fenomenologia mediúnica. As questões atuais são mais de natureza ética, humanista, para as quais o espiritismo tem uma proposta bem interessante, em acordo com a mensagem de Jesus. Quando Kardec diz que o espiritismo serve ao cristianismo como fundamentação dos ensinos cristãos, diz que, ao provar que somos imortais, dá uma dimensão muito maior à mensagem de Jesus. Não está circunscrevendo, mas mostrando que estamos em processo. Que não é porque numa vida você não conseguiu esse ideal que você não tem mais chance, mas que tem possibilidade de alcançá-lo através das vidas sucessivas. Assim, há um processo de conhecimento, de evolução, partindo-se já da premissa de que você é imortal. Assim, tanto o catolicismo como o protestantismo e o espiritismo são imortalistas, e, portanto, espiritualistas.

Publicado no jornal Correio Fraterno,
Edição 466 novembro/dezembro 2015.